Estavas por aqui. Assídua, real, palpável. Hoje, não mais. Essa incerta presença de chuva que, quando já não podem os olhos contra as fronteiras, faz do cheiro de terra molhada o caminho que se quer.
Não sei se voltas. Faço o quê? Me entrego para combate à fome na África? Esqueço as ofensas de Deus e tomo, enfim, também eu a via crucis? Me junto aos homens que andam às ruas? Choro com a mulher que perdeu o filho? Ao menos se o corpo me oferecesse uma ferida pela qual a dor escoasse. Mas a dor é invariavelmente qualquer coisa que não passa.
Se voltas, faço o quê? Corto os cabelos? Adio os planos com a navalha? Dou-lhe beijinhos? Ponho à mesa xícaras para o café? Leio em bom tom para os teus ouvidos tudo isso que tenho escrito nos dias longe de ti? Espero em silêncio pacientemente o que terás a dizer? Ou faço-me, então, como os religiosos que em nada se aplicam e de nada dispõem suas vidas senão para o terror e a glória da espera? E nunca, meu amor, se sabe o que fazem aqueles que esperam.
Prometo tatear seu corpo como um homem cego põe-se a conhecer o invisível, para que eu nunca mais esqueça teu rosto.
Meu amor de tanto tempo, esta carta é uma confissão contra o meu próprio corpo e são estas palavras com as quais escolho me trair. Perdoa-me por tudo, menos por te amar.
Para ela, 28/09/2016
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