quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Quando já não podia de saudades

Estavas por aqui. Assídua, real, palpável. Hoje, não mais. Essa incerta presença de chuva que, quando já não podem os olhos contra as fronteiras, faz do cheiro de terra molhada o caminho que se quer.

Não sei se voltas. Faço o quê? Me entrego para combate à fome na África? Esqueço as ofensas de Deus e tomo, enfim, também eu a via crucis? Me junto aos homens que andam às ruas? Choro com a mulher que perdeu o filho? Ao menos se o corpo me oferecesse uma ferida pela qual a dor escoasse. Mas a dor é invariavelmente qualquer coisa que não passa.

Se voltas, faço o quê? Corto os cabelos? Adio os planos com a navalha? Dou-lhe beijinhos? Ponho à mesa xícaras para o café? Leio em bom tom para os teus ouvidos tudo isso que tenho escrito nos dias longe de ti? Espero em silêncio pacientemente o que terás a dizer? Ou faço-me, então, como os religiosos que em nada se aplicam e de nada dispõem suas vidas senão para o terror e a glória da espera? E nunca, meu amor, se sabe o que fazem aqueles que esperam.

Prometo tatear seu corpo como um homem cego põe-se a conhecer o invisível, para que eu nunca mais esqueça teu rosto.

Meu amor de tanto tempo, esta carta é uma confissão contra o meu próprio corpo e são estas palavras com as quais escolho me trair. Perdoa-me por tudo, menos por te amar.


                                                                                                 Para ela, 28/09/2016

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